Artigo – Ata notarial em matéria de pornografia: Revisão do Parecer 44/2021 da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de SP e do Provimento 100 do CNJ

Site CNB – Escritura Pública

Por Carolina Christofoletti e Thomas Nosch Gonçalves

 

As festividades de fim de um ano pandêmico já se aproximavam quando o então New York Times publicou, na voz do jornalista Nicholas Kristof, uma reportagem que viralizou em questão de horas. O título já era, per se, chamativo: “As crianças do PornHub”1 é a manchete que Kristof escolheu para chamar a atenção do mundo para o fato de que existia, por fim, uma cifra oculta de tráfico humano e pornografia infantil que corria, às escondidas, em uma das plataformas de conteúdo adulto mais conhecidas no mundo.

Uma estudante de 14 anos, quem dá à Kristof um estudo de caso real, conta ao jornal americano como um de seus vídeos sexuais terminou, por fim, no PornHub – uma plataforma que, de frente à uma avalanche de vídeos sendo descarregados a cada minuto e contando com um time consideravelmente estreito de analistas, não tem condição de dizer, por fim, quantos anos exatamente têm a adolescente da foto. E, claro, nem menos se esta é menor de 18 anos – a qualificar o material então como um de pornografia infantil.

Diante do escândalo do PornHub, a hotline inglesa Internet Watch Foundation (IWF) escreveu, em pronunciamento público, que “os dados do PornHub fora de contexto não nos dizem absolutamente nada”. De fato. Em uma manifestação publicada, em língua inglesa, em seu portal oficial, a IWF, uma elucidação simples, mas exaustiva sobre o problema da idade da vítima, a afirmar que:

“1. Existe um analista para checar, com olhos humanos, todas as denúncias de pornografia infantil que a IWF recebe;

 

  1. A IWF – tal como outras hotlines – é desafiada pela necessidade de estimar com precisão a idade das crianças que vemos nas imagens; diante da hipótese de que um indivíduo retratado nas imagens possa ser um adulto, e a menos que existam provas de que se trata de uma vítima de abuso sexual (como provas policiais), não podemos fazer nada. [grife-se]

 

  1. Que embora as imagens de abuso sexual infantil sejam ilegais em todo mundo, existem diferentes leis que regem esta definição em diferentes países. Em termos simples, não existe uma norma internacional”. – Internet Watch Foundation, 20202

 

Sem adentrar, neste momento, na questão das definições e na qualificação do material (que será, caso submetido à hotline inglesa, analisado conforme a lei inglesa), o fato é que o problema da estimação da idade permanece – e, conforme demonstrado, com consequências graves.

A ata notarial somada a expedição da certidão da Central do Registro Civil (CRC) pode certificar a idade e comprovar essa agressão ou crime digital, principalmente pela: a) a (auto) autoria do material b) a idade da vítima abriria, por fim, uma rota que se via até então como impensável: “PornHub, remova este vídeo – pois que quem confirma a idade é um oficial de fé pública.”

O notário, em lavrando uma tal ata notarial (conforme se delimita em sequência), não só confere força jurídica ao pedido da vítima (cuja recusa sujeitará a empresa à legislação penal) como, simultaneamente, estoura a bolha de proteção jurídica chamada “dúvida” que os materiais de pornografia infantil – e principalmente os produzidos contra adolescentes, onde o problema da idade é ainda mais claro – viviam até então frente às políticas de remoção.

Curiosamente, conforme Kristof e anteriormente um gráfico de 2015 emitido pelo próprio PornHub3 demonstram, os sites de conteúdo adulto têm um interesse baixíssimo em remover este conteúdo “duvidoso”. Existe muita gente procurando por eles e, consequentemente, também muito dinheiro envolvido. “Teen” (adolescente) era, em 2015, a segunda palavra mais procurada no PornHub.

Em uma edição anterior deste texto4, demonstrou-se o impacto positivo que uma ata notarial lavrada de modo a certificar a idade da vítima – com fé pública e por meio de uma certidão do registro civil – poderia ter para casos como estes.

Não obstante, a hipótese delineada nestas duas edições volta-se para um caso ainda mais particular: os arquivos ainda não publicados, autoproduzidos e enviados para um terceiro, cujo destino é desconhecido e finalmente sobre os quais as vítimas podem pedir, conforme demonstrado pela Internet Watch Foundation5, uma tutela preventiva para os canais de denúncia.

Afinal, se o canal de denúncias de pornografia conhece o conteúdo antes da plataforma hasheada em questão (como é o caso do PornHub)6, então este arquivo é removível no próprio ato do upload, sendo a conta que descarregou o conteúdo na plataforma imediatamente banida.

O desenho ideal está, então, em antecipar-se as plataformas e fazer com que o arquivo de pornografia infantil chegue com anterioridade nos algoritmos de remoção – ao invés de fazer com que os materiais de pornografia infantil sejam encontrados, removidos e hasheados por algum analista (no caso, do PornHub) após serem publicados na plataforma.

Parecer 44 da Corregedoria de Justiça do Estado de São Paulo, de 30 de setembro de 2021

Apenas um dia após a publicação da primeira edição deste texto, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo profere um Parecer que serve a regular, justamente, a questão da ata notarial em matéria de pornografia infantil (CG 44/2011, de 30 de setembro de 2021) onde regula-se, principalmente, a publicidade mitigada do livro que contenha: a) imagens ou b) descrições de imagens de pornografia infantil (148.6 – “O Tabelião adotará medida de controle de acesso ao livro que contenha ata notarial com a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica, para o que poderá manter livro exclusivo para essa espécie de ato notarial”).

Além disso, estipula que “148.7 É vedado o compartilhamento eletrônico de ata notarial, da sua certidão ou traslado, que contenha a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica com a aparente participação de criança ou adolescente, ainda que por meio de Central de Serviços Eletrônicos Compartilhados, salvo se para atender requisição judicial, do Ministério Público ou da autoridade policial competente para a apuração dos fatos em que tenha sido determinado o encaminhamento por esse modo”.

Sobre este ponto que pretende arguir justamente, desde o início, por estes autores, que a  conversão em hashes resolverá, por fim, o problema das imagens de pornografia infantil anexadas em traslado ou certidões, substituindo-as por um valor alfanumérico capaz de provar, por fim, a autenticidade da mesma frente, eventualmente, à um canal de denúncia (ainda que internacional) para o qual se solicita o ingresso da imagem às bases de dado detecção e remoção automática de conteúdo.

No mais, entende-se que para o fim proposto – cujo principal objetivo permanece sendo a prova da idade da vítima e mitigação da publicidade das imagens  – a mera conferência de que o material constitui pornografia infantil nos termos do Art. 241-E do Código da Criança e do Adolescente (” qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais”) cumpre, por fim, já a finalidade da ata notarial e a expedição da certidão do registro civil das pessoas naturais.

Por essa razão, vê-se por desnecessária qualquer definição minuciosa – tal como a que ocorre, atualmente, com a Cybertips (comunicações de pornografia infantil originárias nos Estados Unidos – ex. material encontrado no Facebook – e  cujo detalhamento justifica-se, tão só, pois que a consulta às imagens  somente é aberta às polícias nacionais e internacionais via solicitação, o que permite que as polícias comprovem, em primeiro plano, a “tipicidade das descrições” antes de solicitar o acesso eletrônico à estes materiais. Um mero controle de acesso, por fim).

No mais, a proposta destes autores é tocar justamente os canais de denúncia – pois que o interesse prioritário é, antes do que um de aplicação da lei penal, um de tutela do menor vulnerável. De forma breve, visa-se a remoção e a detecção preventiva destes materiais através de uma inserção em uma base de dados adequada para tanto.

Menciona o referido Parecer 44, que  “148.7  É vedado o compartilhamento eletrônico de ata notarial, da sua certidão ou traslado, que contenha a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica com a aparente participação de criança ou adolescente, ainda que por meio de Central de Serviços Eletrônicos Compartilhados, salvo se para atender requisição judicial, do Ministério Público ou da autoridade policial competente para a apuração dos fatos em que tenha sido determinado o encaminhamento por esse modo”. Percebe-se aqui a falta, justamente, dos canais de denúncia (inclusive, do canal de denúncia brasileiro SaferNet Brasil, parceiro da Linha Internacional dos Canais de Denúncia de Pornografia Infantil (INHOPE – “46 canais de denúncia, 42 países e uma missão”- no Brasil).

Ainda que o INHOPE não possua hoje uma base de dados de hash, incluir os materiais conhecidos via ata notarial no escopo das linhas de denúncia é de suma relevância para que estes possam ser abraçados por novas políticas de proteção lançadas, por fim, à nível de INHOPE. Todavia, ainda que o INHOPE não tenha a sua base própria de dados, todos os canais de denúncia hasheam estes materiais, enviando-os para anexo em bases de dados (de terceiros, como o caso da ICAAM7, a base de dados de pornografia infantil da Interpol) de remoção8.

No mais, enxerga-se aqui uma potencial colisão de interesses entre a realização de uma representação penal e a simples constatação em ata notarial de um material de pornografia infantil – a qual deve servir, por fim, para um propósito não de persecução penal, mas sim de tutela, a fim mesmo de incentivar essa comunicação. A Internet Watch Foundation, ao instituir um canal para hasheamento de imagens de pornografia infantil auto-produzido, não condiciona e nem mesmo notifica as polícias sobre uma tal comunicação. Importante para o canal de denúncia é proteger a vítima, independentemente da vontade desta de reportar criminalmente o caso, que também poderá ser exercido em momento posterior.

Aponta-se, assim, um ponto de discussão referente aos parágrafos do Parecer 44 da Corregedoria que instituem tal comunicação obrigatória – a qual pode, por fim, afugentar a vítima, causando com que ela simplesmente desista de pedir ajuda (especialmente, como nos casos dos materiais autoproduzidos, quando as imagens foram enviadas à um estranho ou quando falta, para o menor, o devido suporte emocional por parte dos responsáveis para estes casos). Especificamente, questiona-se os seguintes itens normativos:

“148.4 O Tabelião de Notas encaminhará, ao Ministério Público e à Autoridade Policial que for competente para a apuração do fato, traslado da ata notarial que contenha a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica com a aparente participação de criança ou adolescente, arquivando a prova da comunicação em classificador próprio, ou por meio eletrônico em arquivo que passará a integrar o acervo da serventia.

148.5 A ata notarial a que se refere o subitem 148.2 conterá, obrigatoriamente, a indicação do Boletim de Ocorrência que for apresentado pelo solicitante do ato, quando existir, ou a indicação de que o fato será comunicado pelo tabelião de notas para o Ministério Público e a autoridade policial”.

A obrigação de comunicação obrigatória parece derivar, por fim, de uma abordagem voltada à materiais hospedados em sites online – casos em que os canais de denúncia, e não exatamente os Cartórios, deveriam estar nas linhas de frente. Afinal, os canais de denúncia (SaferNet Brasil, por exemplo) reportarão, necessariamente, os conteúdos às polícias. Envie-se, por fim, aos canais de denúncia que eles sim enviarão, no caso de URLs, o caso às polícias e solicitarão à remoção dos conteúdos. Os canais de denúncia precisam, necessariamente, entrar nesta discussão. É imprescindível mencioná-los: são eles, por fim, que coordenam as remoções. E, em um país que não pune a mera hospedagem de pornografia infantil (por falta de responsabilidade penal da pessoa jurídica) por URLs, os canais de denúncia – antes do que as polícias – deveriam ser, tanto para o caso dos URLs como para o caso dos materiais autoproduzidos, os protagonistas. Eis a proposta.

Provimento 100 do Conselho Nacional de Justiça de 26 de maio de 2020 

Para o mundo jurídico, a mera menção “valor de hash” – conforme proposta na primeira edição deste texto – parece uma abstração matemática insolvível. No âmbito notarial e registral, este está regulado desde 26 de maio de 2020, em âmbito nacional  – alguns estados já tinham previsão, como por exemplo São Paulo, vide Provimento 22/2013 da CGJ/SP –  quando o Provimento 100 do CNJ menciona, em seu artigo 3º e em matéria de desmaterialização que “§ 3º A autenticação notarial gerará um registro na CENAD, que conterá os dados do notário ou preposto que o tenha assinado, a data e hora da assinatura e um código de verificação (hash), que será arquivado”.

A própria CGJ/SP no Parecer 239/2013-E9 do Provimento 22/2013 citado acima, sob relatoria do Antônio Carlos Alves Braga Junior e decisão de José Renato Nalini, então Corregedor Geral da Justiça, trouxeram de maneira didática a delimitação do tema “hash”:

O código hash é um resumo matemático decorrente da aplicação de um algoritmo, de conhecimento público, sobre um documento eletrônico. O resultado dessa operação é um código numérico único, ou que tem uma possibilidade desprezível de ser igual para dois documentos diferentes. É exatamente esse código que permite ao certificado digital funcionar tanto como verificador da autoria quanto da integridade.

No processo de assinatura eletrônica, calculado o código hash, ele é anexado ao documento, que depois vem a ser encriptado. Para a verificação, o hash é recalculado e comparado com aquele que acompanha o documento. Se forem iguais, tem-se a certeza de que não houve alteração do conteúdo depois de certificado. Mesmo alterações de texto que nos sejam invisíveis, não o são para o algoritmo que gera o hash. Se um documento eletrônico foi modificado, em um único caractere que seja, o hash não mais será o mesmo.

A solução encontrada pelo Colégio Notarial consiste no aproveitamento dessa tecnologia.

Quando o notário gera um documento eletrônico e o assina usando a CENAD, o hash, é não só anexado ao documento, mas também arquivado. Em qualquer momento em que se queira fazer a conferência, envia-se o documento à Central (upload).

Numa operação, que é automática, o hash é calculado e comparado com aquele que se encontra arquivado. A coincidência leva à confirmação da validade, num processo quase instantâneo. Não há armazenamento do documento propriamente dito, apenas do hash, o que oferece várias conveniências. Por ser uma informação muito leve, isto é, que consiste numa quantidade ínfima de bits, o armazenamento ocupa pouquíssimo espaço de memória, e o tráfego dessa informação é muito rápido. Por ser simples e rápido, esse método deverá difundir-se amplamente, em benefício da confiança nos documentos notariais eletrônicos.

Eis o que se quer, também, em matéria de ata notarial em pornografia, tanto infantil como qualquer imagem que exponha a intimidade de uma pessoa: Converter as imagens em um valor alfanumérico cuja autenticidade possa ser checada sempre e quando se tenha também o arquivo na outra ponta. Em termos práticos, isso significa que um canal de denúncia de pornografia infantil estrangeiro ou as polícias, se em posse da imagem (condição lógica da autenticação) poderia, se aceita a proposta aqui feita, acessar eletronicamente a Central do E-notariado, https://www.e-notariado.org.br/notary – que contempla os cartórios brasileiros a fim de checar que, de fato, a imagem que possuem e está sob ata notarial previamente lavrada é, de fato, uma imagem produzida contra um menor de 18 anos, ou até mesmo de um absolutamente capaz que solicitou a constatação do conteúdo.

E, em termos matemáticos, é sempre bom lembrar que hashes nada mais são que o princípio da criptografia, funções modulares altamente complexas, cujo princípio está, justamente, em não serem reversíveis. Ao inserir a imagem em um software de checagem (tal como é hoje o modelo dos softwares de detecção e remoção automática de pornografia infantil), se pode autenticar a imagem com uma previamente existente na base de dados. Todavia, através do valor de hash não se pode reverter a imagem, isto é um absurdo técnico.

O modelo aqui proposto resolveria, por fim, a questão inscrita no Parecer 44 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. É dizer, que: “148.7 É vedado o compartilhamento eletrônico de ata notarial, da sua certidão ou traslado, que contenha a descrição ou a reprodução de ato de sexo ou cena pornográfica com a aparente participação de criança ou adolescente, ainda que por meio de Central de Serviços Eletrônicos Compartilhados, salvo se para atender requisição judicial, do Ministério Público ou da autoridade policial competente para a apuração dos fatos em que tenha sido determinado o encaminhamento por esse modo”.

No limite, o valor de hash – um velho conhecido da informática forense e, consequentemente, também das polícias especializadas em crimes de pornografia infantil – nada mais é que um valor alfanumérico que pode ser atribuído a todo e qualquer arquivo que se encontre dentro de um dispositivo informático. E, isso se dá, entre outros motivos, pelo fato de que dentro de um dispositivo informático tudo, desde letras, números ou mesmo imagens nada mais são que binários (0 e 1) traduzidos e transplantados para uma interface gráfica.

Pois que o hash rastreia o arquivo entorno dos 0 e 1, qualquer modificação no arquivo ou mesmo a sua troca por um outro pode ser identificada pelo número de hash. Uma vez modificado o arquivo, ainda que por uma alteração mínima, o número de hash já não será mais o mesmo. Não sem razão o cálculo do hash do arquivo é, justamente, o método usado para autenticar, a nível de cartório, digitalmente um documento.

Pois que os valores de hashes computam, exatamente, a forma em que os dados estão organizados em binários, é possível traduzir essas organizações de diversas maneiras – eis as chamadas cifras de hash. Não é necessário muito esforço para concluir, enfim, que a lógica por detrás dos hashes é a mesma daquela que existe por detrás da criptografia.

Trata-se de traduzir uma imagem gráfica em um texto simultaneamente inelegível por humanos e autenticável por máquinas e que possa garantir, por fim, a autenticação de qualquer cópia do mesmo sempre e quando aquele que checa o valor de hash tenha, enfim, um segundo documento para comparar o valor de hash.

Assim por exemplo, ao hashear com a cifra SHA256 a palavra “Pornografia Infantil”, o resultado é o que se vê:

Para fins de validação de documentos, é importante que ambos os documentos (tanto à verificar como o contido na base de dados para confirmação) sejam hasheados com a mesma cifra – fato este que é garantido, no âmbito notarial, pela própria plataforma CENAD.

Como se observa, o cálculo do valor de hash pode ser feito através de ferramentas online (não recomendável para arquivos sensíveis) ou através de softwares específicos, tal como o software forense HashSum, um software gratuito e de fácil acesso que permite calcular, através de um click (como também demonstrado na imagem acima) o valor de hash de um arquivo.

No mais, a tradução, através de um software, de conteúdos sensíveis tal como os de pornografia infantil para um valor alfanumérico permite, conforme se abordará adiante, trabalhar a ata notarial em matéria de pornografia sobre uma dupla publicidade:  primeira, que recai justamente sobre os valores de hash – e que não precisa, portanto, ser restrita e a segunda publicidade que recai, essa sim, sobre os livros notariais – onde o arquivo deverá então estar materializado.

Ademais, trabalhar com os valores de hash ao invés dos arquivos em si permitiria, por exemplo, que se evitasse a materialização destas imagens em processos judiciais ao mesmo tempo em que se evitaria que, por via judicial, fosse exercida uma nova vitimização da criança ou adolescente vítima de pornografia infantil ou ainda de um adulto que sofreu com a exposição de sua intimidade – a qual teme muitas vezes não a representação judicial, mas a própria exposição das imagens a qual se tentava exatamente evitar.

Os valores de hash resolvem, portanto, essa contradição e servem, assim, como um incentivo adicional para as denúncias – e principalmente às denúncias que partam da própria vítima. A simples conversão de um arquivo de pornografia infantil em um valor de hash, nos moldes do que é hoje feito em matéria de perícia informática forense, evitaria que as imagens em questão fossem expostas as pessoas, advogados e outros atores do sistema de justiça.

No mais, parece ser relevante lembrar que o sistema de checagem da CENAD é nada mais do que um site que pode ser acessado em um browser através de qualquer lugar do mundo. Assim, a simples conversão de imagens de pornografia infantil autoproduzidas em valores hashes permitira, igualmente, que canais de denúncia estrangeiros que recebesse, via solicitação direta, um pedido de ajuda por parte das vítimas pudessem conferir, do outro lado do oceano, que aquele arquivo foi, de fato, oficiado por um notário e um registrador civil das pessoas naturais, à nível nacional quem confirmam, em pronunciamento que gozam de fé pública, a condição de menor de 18 anos da vítima.

No mais, a partir do momento em que a imagem em questão se materializaria, ainda assim, em um livro notarial – ainda que de publicidade restrita-  isso permitira não só que a vítima pudesse apagar os tais arquivos de seus dispositivos móveis sem prejuízo à sua posterior tutela, mas, igualmente, que pudessem, anos depois, revisitar o arquivo e pedir, por fim, que este seja incluído nas bases de remoção. Sem a ata notarial, esses hashes ficariam, após a deleção do arquivo pela vítima, perdidos para sempre.

Então, se os peritos forenses operam, de fato, com os hashes, qual a razão de se ver, ainda hoje, materiais de pornografia infantil anexados em laudos judiciais? Eis o caso: O perito, diferentemente do tabelião, não possui fé pública – razão pelas quais muitas das vezes se arquivam ainda, no processo, algumas amostras de pornografia infantil a fim de que possam provar, por fim, a materialidade mínima para uma condenação.

Em revisando o Parecer 44/2021 da CGJ/SP, o que se propõe é que a publicidade da ata notarial seja analisada em dois aspectos: Em primeiro, à publicidade dos livros, que estariam por fim restritos (estes sim) somente à acessos de legítimo interesse. E, em segundo, a publicidade das certidões e informações emitidas via translado que, sem fazer constar o nome da vítima (por desnecessário), seria capaz de materializar uma imagem de pornografia via um valor de hash (seu exato correspondente matemático).

Em assim fazendo, resolve-se o problema das imagens aqui potencialmente contidas se, contudo, restringir a publicidade do instrumento. Afinal, importante relembrar, ainda que os valores de hash sejam irreversíveis, estes são autenticados – sempre e quando se possua a tal imagem para fins de se proceder com a verificação, o que conseguiria, com um golpe de matemática, reservar as autenticações às polícias e canais de denúncia ao mesmo tempo que garante, por fim, a transparência plena da atividade notarial.

Conclusão

Os valores de hash já estão, no âmbito notarial brasileiro e em esfera nacional, implementados desde 2020 através do Provimento 100 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A materialização de imagens de pornografia infantil em valores de hash é a melhor alternativa em termos de proteção das vítimas, permitindo-as acionar diretamente e em seguida, as bases de dados de pornografia infantil à nível internacional a fim de solicitar que os arquivos em questão sejam também processados pelos mecanismos de identificação e remoção automática de conteúdo.

No mais, a materialização de imagens de pornografia infantil em valores de hash previne, em processos judiciais, a revitimização gerada pela exposição destes arquivos.

Essa mesma sistemática poderá ser utilizada por adultos que tiverem sua intimidade violada e necessitará de uma constituição de prova apta a solicitar a remoção do conteúdo indevido.

A ata notarial em matéria de pornografia infantil deve ser independente da comunicação às autoridades policiais.

É imprescindível que os Canais de Denúncia protagonizem esta discussão. São eles – e não as polícias – os agentes institucionalmente responsáveis pelas remoções.

A conversão de arquivos de pornografia infantil em hash é, em âmbito internacional, simultaneamente parte das boas práticas em gestão de bases de dados sensíveis e motor propulsor das remoções automáticas feitas à base de inteligência artificial e automação. É imprescindível falar, também aqui, a linguagem técnica dos algoritmos a fim de tornar a tutela “acionável”.

A possibilidade de autenticação eletrônica dos materiais de pornografia infantil, protegidos pela sua transmutação em um valor de hash irreversível, garante a acessibilidade necessária para uma tutela internacional das vítimas – já que, a princípio, qualquer canal de denúncia, grande corporação ou polícia internacional em posse do material poderia provar, em face de uma requisição de remoção, que a vítima é sim menor de idade. Conforme demonstrado, esta era e é um dos maiores problemas enfrentados hoje pelas vítimas para a remoção de seus próprios conteúdos. A ata notarial constrói aqui, neste modelo, uma solução jurídica plausível.

A conversão de arquivos de pornografia infantil autoproduzidos em valores de hash em uma ata notarial apta a conferir não a descrição minuciosa da imagem, mas simplesmente a tipificação penal garantiria simultaneamente o respeito à moralidade pública exigida da atividade notarial, a publicidade exigida para este exercício e municiaria, por fim, a vítima com um instrumento jurídico que é por fim acionável em prol de sua própria (e aqui também auto) tutela.

Referências 

1 The Children of Pornhub: Why does Canada allow this company to profit off videos of exploitation and assault? Nicholas Kristof. New York Times. 4 de dezembro de 2020.

2 Andrew Puddephatt, 2020. Pornhub: Data out of context tells us nothing. Internet Watch Foundation. 15 de Dezembro de 2020. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui.

3 Pornhub’s 2015 Year in Review. Pornhub Insights. January 2016. Acesso em: 9 de outubro de 2020. Disponível aqui.

4 Christofoletti, Carolina; Nosch, Thomas G, 2021. Como os cartórios brasileiros -Tabelionato de Notas e Registro Civil – podem resolver, a nível internacional, por meio Ata Notarial e a consulta na Central do Registro Civil o problema enfrentado pelos Canais de Denúncia no combate a pornografia infanti. IBDFAM. 29 de setembro de 2021. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui.

5 IWF and Childline launch tool to help young people remove nude images shared online. INHOPE. 5 de julho de 2021. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui.

6 Child Sexual Abuse Material Policy. PornHub HelpCenter. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui.

7 What is ICCAM & Why is it important?. INHOPE. 24 de fevereiro de 2021. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui.

8 Where your reports go. INHOPE. 17 de março de 2020. Acesso em: 9 de outubro de 2021. Disponível aqui.

9 Disponibilização: Quinta-feira, 25 de Julho de 2013 Diário da Justiça Eletrônico – Caderno Administrativo São Paulo, Ano VI – Edição 1462 9. Acesso em 19/10/2021.

 

Autores

Carolina Christofoletti: Bacharela em Direito pela USP, Mestranda em Criminalidade Cibernética (Universidad de Nebrija) e Compliance Criminal (UCLM). Legal Fellow na International Justice Mission (IJM) Filipinas. Chefe da Unidade sobre Materiais de Abuso Sexual Infantil pela Anti-Human Trafficking Intelligence Initiative (ATII), advogada e consultora.

Thomas Nosch Gonçalves: Mestrando em direito na USP, pós-graduado em direito civil pela USP, tabelião e registrador em SP, especialista pela EPM em notas e registro.

 

Fonte: Migalhas