Artigo – O parágrafo 3º do artigo 833 do CPC e a relativização da impenhorabilidade – Por João Guilherme A. de Farias

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O presente texto, impulsionado pela disposição inovadora do parágrafo 3º do artigo 833 do CPC/2015, busca iniciar uma discussão em torno da hipótese ali contida e ainda pouco explorada. Obviamente, a ausência de abordagens dedicadas aos problemas colocados pelo referido parágrafo se justifica pela própria inexistência de norma correspondente no CPC/1973, inovando, pois, a ordem processual.

O artigo 833 do CPC/2015 acabou, no essencial, por reproduzir as disposições contidas nos incisos e parágrafos do CPC/1973, sendo as modificações mais notáveis aquelas promovidas por meio da supressão do termo “absolutamente” que ostentava o caput do artigo 649 do CPC/1973, da inserção do inciso XII ao rol das impenhorabilidades do artigo 833 do CPC/2015, além da redação dos parágrafos 1º e 2º, e, é claro, do acréscimo do parágrafo 3º, sendo este nosso objeto de análise.

Vejamos, com nossos destaques, o que diz o parágrafo 3º do artigo 833 do CPC/2015, que deve ser interpretado em conjunto com o inciso V do mesmo dispositivo, por isso a reprodução de ambos:

Art. 833. São impenhoráveis:
[…] V – os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;
[…] § 3º Incluem-se na impenhorabilidade prevista no inciso V do caput os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural, exceto quando tais bens tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária.

O problema
Com a exceção dos comentários de Cássio Scarpinella Bueno, que, a nosso entender, foi quem mais compreendeu o sentido da norma, em regra, a doutrina dedicada ao processo civil tem ignorado o disposto no parágrafo 3º do artigo 833 do CPC/2015.

Segundo Scarpinella Bueno[1], com grifos nossos, “o § 3º do art. 833 […] especifica as situações em que os bens referidos no inciso V (bens necessários ao desenvolvimento da profissão pelo executado) podem ser penhorados”.

Diferentemente dele, alguns dos mais importantes processualistas não têm dado o devido tratamento à regra contida no parágrafo 3º do artigo 833 do CPC[2]. Nelson Nery Jr. e Rosa Nery, por exemplo, chegam a afirmar que o parágrafo 3º seria “desnecessário, tendo em vista que descreve a aplicação conjunta do inciso V e dos §§ 1º e 2º”.

Com o perdão da discordância, entendemos não ser possível afirmar que a regra esculpida no parágrafo 3º já seria abrangida pela aplicação conjunta do inciso V e dos parágrafos 1º e 2º do artigo 833 do CPC/2015, declarando diante disso a sua “desnecessidade”, tal como fazem Nelson Nery Jr. e Rosa Nery.

É preciso lembrar que a exceção prevista no parágrafo 1º diz respeito unicamente à execução de dívida relativa ao próprio bem, tal como determinava o artigo 649, parágrafo 1º, do CPC/73; o parágrafo 2º, a seu turno, tal como o artigo 649, parágrafo 2º, do CPC/73, excepciona “a penhorabilidade de vencimentos, salários e afins (inciso IV) e dos depósitos feitos em caderneta de poupança até quarenta salários mínimos (inciso X) para pagamento de alimentos, acrescentando tratar-se de alimentos ‘independentemente de sua origem’, isto é, não só os legítimos, mas também os indenizativos[3].

Diferentemente do parágrafo 1º, que relativiza a penhora no caso de dívida fundada na aquisição do próprio bem que se busca penhorar ou a ele relativa, e do parágrafo 2º, que trata especificamente das exceções contidas nos incisos IV e X, o parágrafo 3º se dedica expressa e especificamente às hipóteses contidas no inciso V. Razão pela qual não é possível tratá-lo como desnecessário ou, o que é ainda mais grave, seguir ignorando sua existência na ordem processual civil.

A inexatidão da redação do parágrafo 3º
A redação do parágrafo 3º, de maneira mais imediata, como faz Scarpinella Bueno, trata das situações em que os bens indicados no inciso V podem ser penhorados. Todavia, tal conclusão não parece coadunar com a literalidade do dispositivo.

A primeira parte do parágrafo 3º diz expressamente que “incluem-se na impenhorabilidade prevista no inciso V do caput”. Logo, uma análise mais atenta do dispositivo indica que o parágrafo 3º acaba por acrescentar, adicionar outros bens ao inciso V.

E continua: “Os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural”. Aqui temos uma clara opção pelo legislador de especificar que os bens acrescidos ao V são aqueles dedicados à produção rural, fazendo uma óbvia distinção entre os bens utilizados à “produção urbana”, vamos dizer assim, e aqueles empregados na “produção rural”.

É dizer, os bens acrescidos ao inciso V — sendo que este trataria da produção urbana — pelo parágrafo 3º seriam aqueles empregados na produção econômica agrícola, rural: especificamente “os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas”.

Continuando, em nosso sentir, é no próximo trecho que reside um problema de redação ainda maior, que, em última instância, deixa de ser um simples problema de redação e passa a dificultar tanto a interpretação como a aplicação da norma, podendo, a depender do caso, inviabilizar a relativização da impenhorabilidade incidente sobre o bem constrito e com isso a própria satisfação do crédito exequível: “exceto quando tais bens”.

Ora, quando a norma sob comento diz “exceto quando tais bens”, quer ela fazer referência apenas aos bens acrescidos ao inciso V pelo parágrafo 3º ou tanto aos bens já previstos no inciso V como aqueles que se acresce por meio do parágrafo 3º, portanto, aos bens empregados tanto na “produção urbana” como na “produção rural”?

Cremos que a conclusão de Cássio Scarpinella Bueno somente tem sentido se considerarmos que a relativização da penhora contida no parágrafo 3º do artigo 833 do CPC/2015 abarcar tanto os bens já estampados no inciso V como aqueles acrescentados pela primeira parte do parágrafo 3º.

No entanto, essa conclusão, em nosso entender, apenas é possível por meio de uma interpretação que possa ser ao mesmo tempo sistemática, extensiva e analógica. Se fixarmos nossa análise ao parágrafo 3º apenas de maneira literal, por consequência estará equivocada a posição tomada por Scarpinella Bueno, para quem, como já foi dito, “o § 3º do art. 833 […] especifica as situações em que os bens referidos no inciso V […] podem ser penhorados”.

No mais, a redação final do parágrafo 3º é límpida, expondo apenas as situações nas quais os bens — resta saber se os contidos no inciso V ou se os inseridos pela parte inicial do parágrafo 3º ou, ainda, se os bens dispostos em ambos dispositivos — podem ter sua impenhorabilidade relativizada. São elas: “Bens [que] tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária”.

Considerações finais
A pretensão do presente texto é iniciar uma discussão ainda pouco explorada, tendo em vista que parte da doutrina processualista, especificamente Scarpinella Bueno, adota a posição de que a leitura conjugada do parágrafo 3º e do inciso V do artigo 833 do CPC/2015 leva a considerar a relativização da impenhorabilidade de todos os bens neles contidos quando tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária[4], enquanto outra parte, como é o caso de Nelson Nery Jr. e Rosa Nery, afirma a desnecessidade de sua existência.

Diante desse cenário, entendemos que a posição de Scarpinella Bueno seria a mais adequada. Entendimento contrário, acreditamos, seria possível apenas se o intérprete se mantivesse preso à literalidade do dispositivo, o que, com todo respeito, reveste-se de pobreza interpretativa.

Ao prever a impenhorabilidade de certos bens, que será relativa — daí a exclusão, correta a nosso ver, do termo “absolutamente” do caput do artigo 649 do CPC/1973 —, o legislador, como afirma Marcelo Abelha[5](2015, p. 162), fixou como bem jurídico tutelado a “proteção da dignidade do executado”, considerando-a “mais importante que o direito do credor à satisfação do direito exequendo”.

No entanto, a preservação da dignidade do executado a que alude Marcelo Abelha deve ser encarada, na esteira da interpretação constitucional da norma processual, em consonância com a afirmação acertada de Araken de Assis[6] (p. 179), para quem “a regra é que, salvo disposição legal em contrário, todos os bens são penhoráveis”, desde que observados os princípios da tipicidade e da disponibilidade.

Seja como for, antes de se chegar a uma conclusão é preciso sanar os problemas que esse texto, de maneira breve e inicial, buscou levantar: i) a exceção do parágrafo 3º se restringe aos bens que ele veio acrescer ao inciso V ou a todos os bens contidos tanto no inciso V como aqueles a ele incluídos pela primeira parte do próprio parágrafo 3º?; ii) se se aceita que a exceção à impenhorabilidade se restringe apenas aos bens acrescidos pelo parágrafo 3º, e não se estende aos bens indicados no inciso V, então não estaríamos diante de uma grave violação do princípio da isonomia?; iii) qual seria o sentido jurídico (e não político) da norma ao diferençar os bens da produção rural e agrícola (equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural) dos, por assim dizer, bens direcionados à produção econômica urbana?; iv) mantendo-se essa diferenciação como critério para aplicar a exceção à impenhorabilidade apenas aos bens acrescidos pelo parágrafo 3º, sem atingir os bens do inciso V, seria ela constitucional?

[1] BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 508.
[2] É o caso, por exemplo, de NEGRÃO, Theotonio; et al. Novo Código de Processo Civil Anotado: e legislação processual em vigor. 47.ed. atual e reform. – São Paulo: Saraiva, 2016; e NERY Jr., Nelson; NERY, Rosa. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
[3] Ibidem, p. 508, 2015.
[4] Cf. “Os bens considerados impenhoráveis, de acordo com o art. 833 são os seguintes: […] (v) os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado, inclusive os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural, exceto quando tais bens tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária (art. 833, § 3º); […]”. BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC – Lei n. 13.105, de 16-3-2015 / Cassio Scarpinella Bueno. São Paulo : Saraiva, 2015, p. 500.
[5] ABELHA, Marcelo. Manual de Execução Civil. 5. ed. rev . e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.
[6] ARAKEN, Assis. Processo Civil Brasileiro: V. IV. [livro eletrônico]. Manual da Execução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

Fonte: Conjur