A rescisão de contrato com garantia fiduciária: Uma questão ainda controversa

Ana Carolina Brito de Paula e Rafaela Campelo

 

Recentemente, a Terceira Turma do STJ1 decidiu por unanimidade pela possibilidade de rescisão de contrato de compra e venda de imóvel garantido por alienação fiduciária em garantia não registrada no assento imobiliário, afastando a aplicação do procedimento previsto na lei 9.514/97.

 

Essa decisão, contudo, não representa um precedente vinculante e está longe de pacificar o tema, que ainda divide opiniões no âmbito jurídico e nas próprias Turmas do STJ. Neste artigo, abordaremos os pontos centrais do debate e explicaremos as razões que não permitem a rescisão desses contratos, ainda que ausente o registro imobiliário.

 

O caso concreto e a decisão da Terceira Turma do STJ

 

Como referido, no caso em análise o contrato de compra e venda com alienação fiduciária não havia sido registrado no Cartório de Registro de Imóveis mesmo após dois anos da celebração (o registro apenas ocorreu após pedido de rescisão formulado pela devedora-fiduciante em ação judicial). A relatora, ministra Nancy Andrighi, em seu voto, aplicou o princípio da boa-fé objetiva por meio da figura parcelar da supressio, fundamentando que o credor fiduciário não poderia, após prolongada inércia, valer-se do registro tardio para afastar a aplicação das normas gerais do CC e do CDC e impedir a rescisão do negócio.

 

O Tema 1.095 e a necessidade de registro

 

A Segunda Seção do STJ, ao julgar o Tema 1.095 sob o rito dos recursos repetitivos, estabeleceu que os contratos de alienação fiduciária devidamente registrados devem observar as disposições da lei 9.514/97 para a execução extrajudicial. Entretanto, a ausência de registro não prejudica a validade e eficácia do contrato, mas é condição para permitir a execução extrajudicial, conforme readequação do tema no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.866.844/SP, em 27/11/23. Essa diferenciação é crucial para entender os limites das decisões judiciais recentes.

 

A própria Terceira Turma do STJ, no julgamento do AgInt no RESp 2077633/SP, em 8/4/24, entendeu que, embora o registro seja uma formalidade necessária para a constituição da propriedade fiduciária, sua ausência não confere ao devedor fiduciante o direito de promover a rescisão a avença por meio diverso daquele contratualmente previsto, tampouco impede o credor fiduciário de, após a efetivação do registro, promover a execução extrajudicial.

 

Em seu voto, o ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva asseverou que a aplicação do procedimento previsto no contrato com pacto adjeto de alienação fiduciária independe de quem seja responsável pelo registro, tendo em vista que o credor fiduciário pode solicitar ao Oficial de Registro de Imóveis o registro antes de iniciar a alienação extrajudicial. Essa posição está fundamentada no princípio da autonomia privada e na função social dos contratos, que asseguram que os acordos firmados livremente entre as partes produzam seus efeitos, respeitando-se a boa-fé objetiva e a segurança jurídica.

 

A boa-fé e a Supressio: Princípios limitadores

 

Embora a boa-fé objetiva (na figura parcelar da supressio) seja princípio importante, sua aplicação irrestrita pode gerar insegurança jurídica, sobretudo em contratos imobiliários complexos. Admitir que a falta de registro permite a rescisão contratual pode levar a interpretações divergentes e desestimular a formalização de negócios jurídicos no mercado imobiliário.

 

Ademais, não há de se falar em violação da boa-fé objetiva por parte do credor fiduciário que promove posteriormente o registro do contrato de alienação fiduciária, considerando que, regra geral do mercado imobiliário, é atribuída ao comprador e devedor fiduciante a responsabilidade pelo registro do contrato e pelo pagamento das respectivas despesas, em conformidade com os termos do contrato e com as disposições do art. 490 do CC.

 

Por outro lado, deve ser reconhecido o comportamento desleal e contraditório por parte do devedor fiduciante que deixa de registrar o contrato após sua formalização, evitando o pagamento das custas de registro antes do pagamento integral do preço e busca afastar a aplicação do procedimento extrajudicial da alienação fiduciária.

 

Afastar a aplicação da lei 9.517/97 devido à inércia deliberada do devedor fiduciário em registrar o contrato abre espaço para um comportamento contraditório, caracterizando o venire contra factum proprium. Essa conduta pode incentivar compradores a permanecerem inertes em relação à sua obrigação de registrar o contrato no competente Cartório de Registro de Imóveis, visando a evitar a aplicação das disposições da lei 9.514/97.

 

O comportamento desleal e contraditório do devedor fiduciário impede, portanto, a aplicação do instituto da supressio. Por outro lado, a inércia deliberada do devedor fiduciário permite ao credor fiduciário o registro do contrato antes de iniciada a alienação extrajudicial.

 

Conclusão

 

A decisão da Terceira Turma do STJ, ora comentada, representa interpretação pontual sobre a rescisão de contratos com alienação fiduciária, não constituindo precedente vinculante ou entendimento consolidado sobre o tema. De acordo com o próprio STJ, a ausência de registro no cartório de imóveis não invalida os termos contratuais.

 

O registro, no entanto, é imprescindível para que o credor fiduciário possa iniciar o procedimento de alienação extrajudicial, sendo uma prerrogativa que ele pode exercer a qualquer momento.

 

Nota-se, que o debate está longe de ser pacificado, e a jurisprudência sobre o tema continua a evoluir. Contudo, é essencial que se preserve a segurança jurídica para todos os envolvidos, respeitando os instrumentos criados para regular os direitos e obrigações das partes no mercado imobiliário.

 

Isto posto, é essencial que os operadores do Direito, consumidores e incorporadores estejam atentos à evolução jurisprudencial e busquem interpretações que respeitem a essência dos contratos, preservando a estabilidade e a confiança nas transações imobiliárias.

 

1 REsp 2.135.500/GO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/11/24, DJe de 8/11/24

 

Fonte: Migalhas