Artigo – Provimento 146 do CNJ: A partilha de bens na união estável e a eventual necessidade de escritura pública – Por Vitor Frederico Kümpel e Victor Volpe Fogolin

Cnj Conselho Nacional Justica1

O provimento 146 do CNJ, de 26 de junho de 2023, esclareceu, de forma acertada, os limites do termo de dissolução da união estável e partilha e do procedimento de alteração de regime de bens dos companheiros, realizados pelo Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, expressando a obrigatoriedade de escritura pública tanto na hipótese do art. 108 do CC/02 quanto em outras situações exigidas por lei.

Nesse contexto, destaca-se que a lei 14.382/22 inseriu na lei dos registros públicos, como atribuição dos registradores civis, a lavratura de termo declaratório de união estável (art. 94-A), disposição que foi regulada pelo provimento 141/23 do CNJ (que alterou o provimento 37/14 do CNJ), permitindo também a lavratura de termos de dissolução de união estável e do procedimento de mudança no regime de bens, com ou sem partilha.

Todavia, as disposições trazidas pelo provimento 141/23 não exigiam expressamente a necessidade de escritura pública para a dissolução de união estável e para a mudança no regime de bens, que envolvessem partilha. Além disso, a redação estabelecia que, no caso de partilha de bens, o valor dos emolumentos do termo declaratório de dissolução de união estável corresponderia ao valor dos emolumentos previstos para a escritura pública do ato (escritura com valor declarado)1.

Esse dispositivo recebeu diversas críticas por contrariar o art. 108 do Código Civil, que exige a escritura pública para a validade de negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País e por tratar-se de atribuição típica do Tabelião de Notas, declaratória da distribuição dos bens e de formalização da vontade das partes (art. 6°, I da lei 8.935/94), inclusive, com a fiscalização tributária em caso de excesso de meação. Esse entendimento ecoou em outro artigo dessa coluna2.

Em positivo esclarecimento, o provimento 146/23 do CNJ alterou essas disposições, estabelecendo que, nas situações de partilha decorrente da dissolução da união estável, persiste a exigência da escritura pública nas hipóteses legais em que esta se mostra obrigatória, como no caso do art. 108 do Código Civil. Portanto, caso o valor do imóvel seja inferior a trinta salários-mínimos ou não existam bens imóveis, o registrador civil poderá realizar a partilha no próprio termo declaratório, que servirá como título hábil, salvo lei em contrário, a ingressar no registro civil. A discussão persiste se o referido título ingressaria no Registro de imóveis, destaca-se que essa situação é diversa da partilha realizada em divórcio ou inventário extrajudicial, que exige escritura pública independentemente do valor, nos termos do CPC.

Sendo assim, no caso de partilha decorrente de dissolução de união estável em que o patrimônio imobiliário tenha valor declarado ou venal acima de trinta salários-mínimos, o título hábil para a operação é a escritura pública, lavrada por Tabelião de Notas. Ressalva-se que continua possível a lavratura do termo declaratório de dissolução de união estável pelo registrador civil nesses casos, com o intuito de declarar o fim desta, provando a cessação dos deveres entre os companheiros, desde que sem a partilha dos bens (que exigirá a escritura pública), para fins registrais.

Do mesmo modo, no requerimento de alteração de regime de bens de união estável com proposta de partilha, caso o patrimônio imobiliário partilhável tenha valor acima de trinta salários-mínimos, faz-se necessária a apresentação de escritura pública ou declaração dos companheiros de que por ora não desejam realizá-la3. Por exemplo, na hipótese de os companheiros promoverem a mudança do regime da comunhão universal para a separação total convencional.

A mudança do regime de bens da união estável não é regulada pelo CC, que diferentemente, no caso do casamento, exige autorização judicial, em rito de jurisdição voluntária, com pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.

Consequentemente, para a alteração do regime de bens dos companheiros, vigora a liberdade de forma, salvo disposição legal em contrário, que é o caso do art. 108 do CC.

Portanto, nas hipóteses da lei, a escritura pública é forma essencial à validade do ato de partilha decorrente de dissolução ou alteração do regime de bens na união estável.

Ademais, nos “considerandos” do provimento 146 do CNJ, o Corregedor Nacional de Justiça, Exmo. ministro Luis Felipe Salomão, fundamenta a alteração na “importância de deixar clara a obrigatoriedade de escritura pública na hipótese do art. 108 do CC mesmo no caso de partilha decorrente de dissolução de união estável registrada no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais”.

A partir disso, infere-se que, em verdade, a exigência de escritura pública na hipótese do art. 108 do CC nunca foi dispensada para a partilha decorrente de dissolução e alteração do regime de união estável, diante de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, evidenciando tratar-se de alteração de caráter interpretativo.

Em outra importante mudança, estabeleceu-se que, enquanto não for editada legislação específica estadual, o valor dos emolumentos devidos ao registrador civil pelo termos declaratórios de reconhecimento ou dissolução de união estável será de 50% do valor previsto para o procedimento de habilitação de casamento5. Foi suprimida a exceção da redação anterior, que estabelecia que, em caso de partilha de bens, o valor dos emolumentos corresponderia ao da escritura pública desse ato jurídico.

No Estado de São Paulo, considerando as situações em que não há partilha ou que não se enquadrem no art. 108 do CC, a opção pelo termo declaratório é menos onerosa ao usuário do que a escritura pública.

Também, em importante alteração6, evidenciou-se a necessidade de prévia homologação pelo STJ no caso de sentença estrangeira e reestabeleceu-se a obrigatoriedade do registro de título estrangeiro referente à união estável no Registro de Títulos e Documentos (que era dispensada pela redação anterior), como condição para a produção de efeitos legais no país, em harmonia com o art. 148 da lei dos registros públicos.

Tal alteração também se compatibiliza com a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça nos autos da consulta 0009075-58.2021.2.00.0000, no sentido da obrigatoriedade do registro de documentos estrangeiros apostilados no Cartório de Registro de Títulos e Documentos.

Desse modo, o provimento 146/23 do CNJ promoveu precisas alterações no provimento 37/14 relacionadas à união estável, harmonizando-o com a legislação, e expressando a necessidade de observância do art. 108 do CC para a partilha de bens e a obrigatoriedade de registro no RTD de títulos estrangeiros, coroando a interpretação sistemática do ordenamento jurídico.

 

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1 Redação anterior do art. 1°-A, § 6º, I do Provimento n° 37/2014 do CNJ.

2 KÜMPEL, V. F.; MADY, F. K., A busca pela natureza jurídica do termo declaratório de união estável. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/387810/a-busca-pela-natureza-juridica-do-termo-declaratorio-de-uniao-estaveldeclaratorio-de-uniao-estavel. Acesso em: 14 de agosto de 2023.

3 Art. 9°-B, V do Provimento n° 37/2014 do CNJ.

4 Art. 1639 do Código Civil.

5 Nova redação do art. 1°-A, § 6º, I do Provimento n° 37/2014 do CNJ.

6 Art. 2°, § 3º do Provimento n° 37/2014 do CNJ.

 

Fonte: Migalhas