ConJur – O testamento magistral: uma nova figura criada em Guaxupé (parte 2) – Por José Fernando Simão

Em nossa última coluna, analisamos a decisão do juiz Milton Biagioni Furquim, de Guaxupé (MG), pela qual duas netas da falecida testadora, não beneficiadas pelo testamento, foram “tornadas herdeiras” e receberam parte da herança à qual não teriam direito, em nítida afronta à vontade da avó.

A questão narrada pela ConJur é de uma testadora, avó de sete netos, sendo cinco havidos na constância do casamento e duas netas havidas de relação não matrimonial. Os cinco netos foram contemplados pelo testamento, e as duas netas, não. A decisão do juiz então incluiu, como herdeiras, as netas em questão.

Um dos fundamentos da sentença foi a igualdade dos filhos e a clara discriminação da testadora.

2.2. A igualdade dos filhos e a inexistente discriminação
É inegável que o Direito Civil brasileiro passou por um processo de repersonalização e consequente despatrimonialização em que o patrimônio deixa de ser o centro de proteção do ordenamento e a pessoa humana assume o papel de relevo[1]. Se isso era absolutamente significativo no sistema do Código Civil de 1916, que foi atingido por uma ordem constitucional em muito incompatível com seus preceitos (a Constituição de 1988 derrubou pilares históricos do Código Civil de 1916, tais como a desigualdade dos filhos e dos cônjuges), o Código Civil de 2002 já nasce na nova ordem, já vem com seus princípios estampados em seu texto.

A leitura do Código Civil de 2002 pelo filtro da Constituição exige um cuidado grande do intérprete, sob pena de enxergarem-se problemas imaginários, fictícios, criando-se problemas aos outros para tornar sua vida difícil (Elena Ferrante).

A igualdade dos filhos não é nem poderia ser absoluta em termos patrimoniais. Isso porque o Direito das Sucessões, como ramo do Direito Civil, que, por sua vez, faz parte do Direito Privado, é o norteado pela vontade e tem por base a liberdade. É por isso que a sucessão legítima é subsidiária, somente aplicando-se a ordem de vocação hereditária se testamento não houver.

Se é verdade que a liberdade de testar não é absoluta e encontra como grande limite a existência de herdeiros necessários (artigo 1.845 do CC), é também verdade que estamos diante de manifestação de liberdade (autonomia, criação da própria regra é decorrência da liberdade), valor que não é menor nem menos importante.

A decisão não entendeu regra basilar do Direito das Sucessões: o testador tem autonomia plena com relação à parte disponível de seus bens. É por isso que o seu nome é “parte disponível”, pois dela é possível que se disponha, que se transmita, sem necessidade de justificativa ou motivo. É ato de liberdade.

A dita discriminação vislumbrada pelo magistrado denota sua total miopia diante do sistema legal. Se a parte é disponível, eu posso dispor em favor de qualquer pessoa (por exemplo, de meu amigo Zeno Veloso, e não em favor de meu amigo Mauricio Bunazar). Teria eu discriminado Bunazar ao não o contemplar com a parte disponível? Se o sistema permite que eu, respeitando a legítima, deixe toda a parte disponível a um só de meus filhos, qual seria o problema em deixar apenas a um só de meus netos?

Se o raciocínio do magistrado fosse aplicado a todo e qualquer testamento, o resultado seria o fim, a morte da liberdade de testar. Alguns exemplos tornam óbvia a questão:

  • se eu testar a parte disponível em favor de meu filho (sexo masculino) e não de minha filha (sexo feminino), haveria nulidade da deixa por sexismo;
  • se eu testar a parte disponível em favor de meu amigo caucasiano e não de meu amigo negro, haveria nulidade da deixa por racismo;
  • se eu testar a parte disponível em favor de meu amigo heterossexual e não de meu amigo homossexual, haveria nulidade da deixa por homofobia;
  • se eu testar a parte disponível em favor de meu filho maior e não de minha filha menor, haveria nulidade da deixa por sexismo e por desproteger o incapaz.

Na Alemanha, a questão foi decidida pelo Tribunal Constitucional conforme noticia Rodrigo Pontes Araldi por e-mail. Não há discriminação em tratar os filhos de maneira desigual quando se trata da parte disponível. A decisão alemã foi a seguinte:

“Um elemento que caracteriza a garantia do direito sucessório é a liberdade de testar. Ela, assim como o direito fundamental de propriedade e o princípio da autonomia privada, ancorado no Art. 2 Abs. 1 GG, serve à autodeterminação do indivíduo na vida jurídica (cf. BVerfGE 91, 346 <358>; 99, 341 <350>). A liberdade de testar, como elemento integrante da garantia do direito sucessório, abrange o poder de o autor da herança, enquanto em vida, ordenar a transmissão de seu patrimônio a um ou mais herdeiros após a sua morte, divergindo da ordem de sucessão legitima; especialmente excluir um herdeiro legítimo de sua participação na herança e limitá-lo, em termos de valor, à parcela não disponível desta (cf. BVerfGE 58, 377 <398>). Ao autor da herança é, desse modo, concedida a possibilidade de regrar amplamente a sucessão por meio de disposição em razão da morte, segundo os seus desejos e ideias pessoais. (cf. BVerfGE 58, 377 <398>; 99, 341 <350 f.>). Em particular não está o autor da herança obrigado pela Constituição ao tratamento igualitário de seus descendentes (cf. BVerfGE 67, 329 <345>)”[2].

O tortuoso raciocínio conduz à conclusão absurda: se a testadora tivesse deixado a parte disponível para terceiros, problema não haveria no exercício de sua liberdade. Problema surge quando escolhe beneficiar todos os netos decorrentes do casamento e não outros.

De outro lado, tivesse a testadora aquinhoado terceiros, ou apenas um ou dois entre seus tantos netos, nem se poderia cogitar da aplicação da tese da discriminação, pois então a escolha estaria despida da discriminação de que se cogita na espécie. No entanto, tendo havido a disposição testamentária em favor e em benefício de cinco dos sete netos, o princípio constitucional que impede a discriminação dos filhos para todo e qualquer fim, especialmente para fins sucessórios, é proteção que, em relação aos avós, obviamente se estende aos netos, que são filhos dos filhos daquela” (grifou-se).

A proteção constitucional de igualdade, que não existe para a questão patrimonial invocada (parte disponível), passa a ser limitação da liberdade de testar, salvo com relação a terceiros.

A decisão conduz ao seguinte absurdo: poderia a testadora deixar sua fortuna de R$ 35 milhões para o time do Flamengo que nada se poderia reclamar. Poderia, ainda, ter beneficiado apenas um dos netos, que os demais não poderiam reclamar. Contudo, por ter beneficiado os cinco netos que decorrem de relação conjugal, ocorre a discriminação.

Isso nos leva a outro problema técnico, desconhecido pelo magistrado. O motivo, as razões para se celebrar um contrato ou se fazer um testamento são irrelevantes para o sistema. E nem poderia ser diferente. A razão ou motivo, apenas quando declarada como razão determinante do negócio jurídico, é motivo de invalidade por erro (a antiga falsa causa do Código Civil de 1916 e atualmente o falso motivo)[3].

É nesse ponto que a sentença denota um poder sobre-humano do magistrado ao interpretar a vontade da falecida: “O que se indaga, portanto, é se pode ser considerada moral e juridicamente válida disposição testamentária eivada dessa discriminação vedada pela nova ordem constitucional. Isso porque tal disposição testamentária contempla uns netos (no total de cinco), em detrimento de outras (as duas autoras), sabendo-se que a única distinção entre todos eles repousa no fato de que, aqueles, (sic) são fruto do casamento das filhas-mulheres da testadora, enquanto estas, (sic) são fruto de relação não matrimonial havida, pelo único filho-homem da testadora, com duas distintas pessoas”.

Como pode o magistrado afirmar que a vontade da testadora decorre dessa “única distinção”? Convivia o magistrado com a família? Conhecia as relações afetivas e pessoais? E, se as conhecesse, poderia julgar com base nesse conhecimento ou deveria se ater às provas dos autos?

O mesmo magistrado anularia um contrato de compra e venda por discriminação pelo fato de o vendedor ser homem e não mulher, caucasiano ou negro, hétero ou homossexual? Se fosse seguido seu raciocínio, sim, pois os motivos de foro íntimo (não gostar de mulheres, negros ou homossexuais) seriam então relevantes para a análise da validade do negócio jurídico.

  1. A conclusão do julgado. Novamente uma falácia lógica
    Em conclusão, como houve abuso de direito e discriminação, a sentença inclui as netas não beneficiadas pelo testamento como herdeiras. A questão dogmática, novamente, é ignorada.

Se discriminação houvesse, e não houve, se abuso de direito houvesse, e não houve, se algum vício houvesse, e não houve, reconheceria o juiz a nulidade do testamento, determinando que os bens seguissem a ordem de vocação hereditária em aplicação ao artigo 1788 do CC:

“Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo”.

Testamento, como negócio jurídico, é expressão da vontade do testador. O magistrado substituiu a testadora e manifestou sua vontade (do juiz) pela vontade do de cujus. Ao incluir duas netas que não seriam herdeiras pelo testamento na qualidade de beneficiárias da herança, a voz do juiz se sobrepôs à voz da testadora. É ele que passa a ser o autor do testamento.

Como lembra Zeno Veloso[4], ao citar Pontes de Miranda[5], Andreas Von Tuhr definiu o testador como a pessoa que os juristas ordinariamente contrariam. Pontes de Miranda acrescenta que “não só o jurista: as gentes do foro, os práticos, os interessados, todo mundo!”.

É isso que se verifica no presente caso. “As gentes do foro” pretendem testar pela testadora.

A decisão teratológica passa a admitir que, no Brasil, o testamento seja conjuntivo, ou seja, feito a quatro mãos pelo testador e pelo magistrado, em momentos sucessivos, é verdade. A vontade do juiz “se soma à vontade do testador” para determinar os destinos dos bens do testador. Guaxupé será lembrada, a partir de hoje, por uma nova modalidade de testamento: o testamento magistral!

O homem não só tem o Direito de testar, mas que ele mesmo é a isso obrigado por um dever geral fundado sobre as leis naturais.”
(Gouvea Pinto, Tratado Regular e Prático de Testamento e Sucessões)

[1] Sobre a repersonalização do direito, ver: FACHIN, Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 92; LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das famílias. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, v. 6, n. 24, 2007, p. 151.
[2] A tradução foi feita por Rodrigo Pontes Araldi. Segue o texto original: “BVerfG v. 19.4.2005, 1 BvR 1644/00 (BVerfGE 112, 332): „Ein bestimmendes Element der Erbrechtsgarantie ist die Testierfreiheit. Sie dient ebenso wie das Eigentumsgrundrecht und der in Art. 2 Abs. 1 GG verankerte Grundsatz der Privatautonomie der Selbstbestimmung des Einzelnen im Rechtsleben (vgl. BVerfGE 91, 346 <358>; 99, 341 <350>). Die Testierfreiheit als Bestandteil der Erbrechtsgarantie umfasst die Befugnis des Erblassers, zu Lebzeiten einen von der gesetzlichen Erbfolge abweichenden Übergang seines Vermögens nach seinem Tode an einen oder mehrere Rechtsnachfolger anzuordnen, insbesondere einen gesetzlichen Erben von der Nachlassbeteiligung auszuschließen und wertmäßig auf den gesetzlichen Pflichtteil zu beschränken (vgl. BVerfGE 58, 377 <398>). Dem Erblasser ist hierdurch die Möglichkeit eingeräumt, die Erbfolge selbst durch Verfügung von Todes wegen weitgehend nach seinen persönlichen Wünschen und Vorstellungen zu regeln (vgl. BVerfGE 58, 377 <398>; 99, 341 <350 f.>). Insbesondere ist der Erblasser von Verfassungs wegen nicht zu einer Gleichbehandlung seiner Abkömmlinge gezwungen (vgl. BVerfGE 67, 329 <345>)”.
[3] CC/16: “Art. 90. Só vicia o ato a falsa causa quando expressa como razão determinante ou sob forma de condição”.
CC/2001: “Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante”.
[4] Temas de Direito Civil, Editora Jupodivum: São Paulo, 2018, p. 390.
[5] Tratado de Direito Privado. Tomo LVI, § 5725, Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1972.

Bibliografia
FACHIN, Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das famílias. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, v. 6, n. 24, 2007.
PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Tomo LVI. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1972.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 1: Lei de Introdução e Parte geral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
VELOSO, Zeno. Temas de Direito Civil, Editora Jupodivum: São Paulo, 2018.

Fonte: ConJur