Jurisprudência mineira – Apelação cível – Ação de registro e abertura de testamento – Testamento cerrado ou particular

O IN DUBIO PRO REO

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REGISTRO E ABERTURA DE TESTAMENTO – TESTAMENTO CERRADO OU PARTICULAR – FORMALIDADES – MITIGAÇAO – IMPOSSIBILIDADE – VÍCIOS EM REQUISITOS ESSENCIAIS COMO PRESENÇA DE TESTEMUNHAS, ENTREGA AO TABELIÃO E AUSÊNCIA DE CERTIFICAÇÃO DA ASSINATURA DO SUBSCRITOR – IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DO DOCUMENTO COMO TESTAMENTO – CODICILO – INVIABILIDADE POR NÃO VERSAR SOBRE QUESTÕES MENORES

– O testamento é ato de última vontade, sendo ato jurídico solene, personalíssimo, que pode ser mudado a qualquer tempo, a teor do art. 1.858 do Código Civil.

– A mitigação das formalidades para reconhecimento de documento como testamento particular encampada pelo STJ diz respeito às formalidades mais brandas, não se vinculando àquelas que buscam dar exatidão à vontade do testador.

– O direito sucessório mereceu especial atenção dos legisladores, criando-se regras específicas para se resguardar a vontade do testador, bem como o direito dos herdeiros.

– Em observância a esses dois pilares, o Código Civil, tanto para o testamento cerrado, quanto para o particular, exige que seja lido e assinado na presença de testemunhas, entregue ao tabelião e certificada a assinatura. Estes requisitos são essenciais para verificar se a vontade do testador não estava viciada e a sua higidez mental no momento de elaboração do documento.

– Se o documento apresentado pela parte ao juízo está fulminado pelos vícios de maior gravidade, já que não foi firmado perante testemunhas, não foi entregue ao tabelião e até mesmo a assinatura do documento não está certificada, não há falar em seu reconhecimento como testamento cerrado ou particular.

– O texto não pode ser reconhecido como codicilo, vez que trata de questão de grande relevância, equiparando a beneficiária a seus próprios filhos, não se adequando à exigência do Código Civil, de que trate de tema de pouca relevância.

– Recurso conhecido e não provido.

Apelação cível nº 1.0000.22.219777-4/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelante: Geraldini Elaine de Sousa Almeida – Apelados: Enedina Maria Costa, Manuel José da Costa Neto, Sandra Costa e outros, Eli Costa espólio de, Representado p/ Invte Manuel José da Costa Neto, Lésio Fátima Costa – Relator: Jd. convocado Paulo Rogério de Souza Abrantes

ACÓRDÃO

Vistos, etc., acorda, em Turma, a 8ª Câmara Cível Especializada do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao recurso.

Belo Horizonte, 15 de dezembro de 2022. – Paulo Rogério de Souza Abrantes – Relator.

VOTO

  1. CONVOCADO PAULO ROGÉRIO DE SOUZA ABRANTES – Cuida-se de apelação cível interposta por Geraldini Elaine de Sousa Almeida contra a sentença constante do documento de ordem 62, proferida pelo Juízo da 1ª Vara de Sucessões e Ausência da Comarca de Belo Horizonte, nos autos do requerimento de aprovação e registro do testamento particular de Eli Costa, que julgou improcedente o pedido e extinguiu o feito com base no art. 487, inc. I, do CPC, condenando a autora ao pagamento das custas, cuja exigibilidade foi suspensa, por deferir a assistência judiciária.

Em suas razões recursais de ordem 65, a apelante almeja que prevaleça a vontade de Eli Costa expressa em carta lacrada e entregue à recorrente. Pontua tratar-se de documento escrito de próprio punho, que deve ser considerado como testamento, seja ele cerrado, privado ou até mesmo codicilo. Busca o cumprimento da vontade do testador e destaca que algumas formalidades legais podem ser superadas, bastando que o documento seja secreto e sem nenhum vício de abertura. Defende a “mitigação do formalismo testamentário”. Afirma o conhecimento técnico do testador e sua plena capacidade quando da redação do documento. Aponta ser afilhada e filha socioafetiva do de cujus devendo ser mantido o seu desejo, de que receba um quinhão igual ao dos filhos biológicos. Requer a reforma da sentença para que o documento seja reconhecido como testamento cerrado, testamento particular ou, subsidiariamente, como codicilo.

O espólio de Eli Costa, figurando como interessado, apresentou contrarrazões no documento de ordem 73, requerendo o desprovimento do recurso.

A Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer de documento ordem 77, opina pelo desprovimento do recurso.

É, no essencial, o relatório.

Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.

Cinge-se a controvérsia recursal em confirmar ou não o acerto da decisão recorrida, que julgou improcedente o pedido contido na ação de abertura e registro de documento particular, objeto de um envelope lacrado, que a parte pretende ver considerado como testamento cerrado, particular ou eventualmente como codicilo.

Importante destacar que a parte autora, ora apelante, alega ter recebido de seu padrinho um envelope lacrado, por ocasião de seu casamento, que se deu nos idos de 1990, e que deveria ser aberto “sete dias após a sua morte”. Informa que não tinha ciência de seu teor e entregou o documento ao juízo nos mesmos moldes em que recebido.

O documento foi aberto em audiência. Em resumo, o escrito, datado de 1º de junho de 1990, previa que a recorrente deveria ser considerada como herdeira, concorrendo em igualdade de condições com os filhos do subscritor (documento ordem 48).

A apelante entende que o documento deve ser reconhecido como testamento cerrado ou particular, asseverando que os requisitos legais para o reconhecimento do documento como testamento devem ser flexibilizados, para que prevaleça a vontade do de cujus.

Os argumentos não procedem.

O direito sucessório mereceu especial atenção dos legisladores, criando-se regras específicas para se resguardar a vontade do testador, bem como os direitos dos herdeiros.

Em observância desses dois pilares, o Código Civil, tanto para o testamento cerrado quanto para o particular, exige que seja lido e assinado na presença de testemunhas. Este requisito é essencial para verificar se a vontade do testador não está viciada, se não agiu, por exemplo, em razão de coação, erro, etc., ou mesmo a sua higidez mental, no momento de elaboração do documento.

A priori, urge ressaltar que o testamento é ato de última vontade, solene (de extremo rigor formal), personalíssimo, que pode ser mudado a qualquer tempo, a teor do art. 1.858 do Código Civil.

O testamento, segundo os ensinamentos de Pontes de Miranda, pode ser visto como:

“Trata-se de declaração unilateral de vontade, não receptícia (não existe qualquer aceitante ou recebedor da declaração de última vontade). Ninguém é comparte, ou destinatário. No testamento público ou no testamento cerrado, o tabelião recebe o que se lhe dita, sem participar do negócio jurídico em si: inscreve, quiçá escreva pelo testador. Mero instrumento com funções acauteladoras. Tanto assim que poderia o disponente escrever o testamento particular: seria válido. A sombra que se vê, o outro lado da relação jurídica, é a mesma dos negócios jurídicos unilaterais, nos direitos reais, nas aquisições não consensuais da propriedade. A voz social, que obriga ao prometido, ou faculta a disposição, ou reconhece o nascer do direito de propriedade. Por isso mesmo, para ser válido o testamento não é de mister que dele se saiba: opera os seus direitos à abertura da sucessão, ainda que os herdeiros e legatários nada saibam. Mas ainda: não é preciso, para sua perfeição, que faleça o testador, menos ainda, que nas cláusulas consintam os beneficiados, o que importa é que o testador tenha capacidade para fazê-lo e o faça dentro da lei. Tanto ele independe da morte, ou de qualquer ato de outrem, que se lhe há de aplicar, e só lhe pode exigir, a lei do tempo em que foi feito. Enlouqueça o testador, mude-se a legislação, nada importa, estava perfeito quando o fez” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, t. LVI, p. 72).

In casu, o documento particular teria sido escrito de próprio punho do testador, mas não houve a presença e sua leitura perante nenhuma testemunha. Tampouco foi entregue ao tabelião, na presença de duas testemunhas, como exige o art. 1.868 do Código Civil (CC).

Verifico, ainda, que não houve qualquer menção à existência de circunstância excepcional, que justificasse a dispensa das testemunhas, como exige o art. 1.879 do CC.

Do mesmo modo, não ocorreu a apuração adequada acerca da veracidade da assinatura lançada no documento.

Logo, há afronta aos requisitos legais essenciais, o que impede que se faça prevalecer a alegada vontade do testador, não se aplicando, pois, ao presente caso, a mitigação dos requisitos, para a validade do testamento, que vêm sendo acolhidos em casos específicos pelo Superior Tribunal de Justiça.

Reporto-me ao seguinte julgado do STJ, que deixa explícito quando se mostra aplicável a teoria invocada pela recorrente:

“Civil. Processual civil. Direito sucessório. Testamento particular. Flexibilização de requisitos. Possibilidade. Necessidade, contudo, de equilíbrio entre o respeito às formalidades essenciais do testamento e o respeito à vontade do testador. Possibilidade de afastamento dos vícios puramente formais, que se relacionam apenas com aspectos externos do testamento. Impossibilidade de superação dos vícios formais-materiais, suscetíveis de contaminar o conteúdo e colocar em dúvida a real vontade do testador. Testamento particular escrito de próprio punho sem a presença e leitura perante nenhuma testemunha. Ausência, ademais, de circunstâncias excepcionais que justificassem a ausência das testemunhas. Ausência de prova técnica sobre a veracidade da assinatura atribuída à autora da herança. Testamento nulo. Dissídio jurisprudencial prejudicado pelo provimento. – Ação distribuída em 10/1/2018. Recurso especial interposto em 27/3/2021 e atribuído à Relatora em 28/12/2021. – O propósito recursal é definir se é válido testamento particular escrito de próprio punho que não foi lido e assinado na presença de nenhuma testemunha, sem declaração, na respectiva cédula, de circunstâncias excepcionais que justificassem a ausência, bem como sem que tenha sido tecnicamente aferida a veracidade da assinatura atribuída à testadora. – A jurisprudência desta Corte revela que, em se tratando de sucessão testamentária, em especial nas hipóteses de testamento particular, é indispensável a busca pelo equilíbrio entre a necessidade de cumprimento de formalidades essenciais nos testamentos particulares e a necessidade, também premente, de abrandamento de determinadas formalidades para que sejam adequadamente respeitadas as manifestações de última vontade do testador. – Nesse contexto, são suscetíveis de superação os vícios de menor gravidade, que podem ser denominados de puramente formais e que se relacionam essencialmente com aspectos externos do testamento particular, ao passo que vícios de maior gravidade, que podem ser chamados de formais-materiais porque transcendem a forma do ato e contaminam o seu próprio conteúdo, acarretam a invalidade do testamento lavrado sem a observância das formalidades que servem para conferir exatidão à vontade do testador. Precedente. – Os vícios pertencentes à primeira espécie – puramente formais – são suscetíveis de superação quando não houver mais nenhum outro motivo para que se coloque em dúvida a vontade do testador, ao passo que os vícios pertencentes à segunda espécie – formais-materiais -, por atingirem diretamente a substância do ato de disposição, implicam na impossibilidade de se reconhecer a validade do próprio testamento. – Na hipótese em exame, é incontroverso que o testamento particular teria sido escrito de próprio punho pelo autor da herança sem a presença e sem a leitura perante nenhuma testemunha, que não houve a declaração, na cédula testamentária, de circunstâncias excepcionais que justificassem a ausência de testemunhas (tampouco foram demonstradas tais circunstâncias na fase instrutória) e que a veracidade da assinatura atribuída à testadora, que não foi objeto de prova pericial, somente foi atestada por uma testemunha, inexistindo, pois, a possibilidade de registro, confirmação e cumprimento do testamento particular apresentado. – O provimento do recurso especial por um dos fundamentos torna despiciendo o exame dos demais suscitados pela parte. Precedentes. – Recurso especial conhecido e provido, a fim de julgar improcedente o pedido de reconhecimento, abertura, registro e cumprimento de testamento particular deixado por Mirian Afonso da Silveira” (REsp nº 2.005.877/MG, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 30/8/2022, DJe de 1/9/2022).

No caso, o documento apresentado pela parte ao juízo não pode ser considerado testamento cerrado e, tampouco testamento particular, porque fulminado pelos vícios de maior gravidade, já que não foi firmado perante testemunhas e sem circunstância que justificasse a dispensa do requisito, não foi entregue ao tabelião e até mesmo a assinatura do documento não está certificada.

Do mesmo modo, o documento não pode ser reconhecido como codicilo, vez que trata de questão de grande relevância, por equiparar a beneficiária aos próprios filhos do testador. Assim, não se adequa a disposição objeto do documento aos requisitos do art.1.881 do CC, vez que não se cuida de questão de pouca importância, porque, como dito, equipara a autora à condição de herdeira necessária, com o que não se ponde invocar ou reconhecer a simplicidade e pouca importância da disposição especial, como disposta no mencionado dispositivo, in verbis:

“Art. 1.881. Toda pessoa capaz de testar poderá, mediante escrito particular seu, datado e assinado, fazer disposições especiais sobre o seu enterro, sobre esmolas de pouca monta a certas e determinadas pessoas, ou, indeterminadamente, aos pobres de certo lugar, assim como legar móveis, roupas ou joias, de pouco valor, de seu uso pessoal”.

Nessa linha de raciocínio também é o bem lançado parecer da Procuradoria-Geral de Justiça:

“No caso em tela, verifico que o documento juntado ao feito à f. 83, é apresentado como testamento do Senhor Eli Costa, falecido em 5/12/2020 – cf. certidão de óbito anexa.

É oportuno enfatizar que o testamento é ato personalíssimo, que exige o cumprimento de certos requisitos, o que me leva a concluir que o documento colacionado aos autos contém vício, não se mostrando, portanto, hábil para o registro”.

Diante de tais fundamentos, por não vislumbrar o cumprimento dos requisitos essenciais de validação do testamento, deve ser confirmada a sentença.

Com essas considerações, nego provimento ao recurso.

Deixo de majorar os honorários conforme determina o art. 85, § 11, do CPC, vez que não foram arbitrados honorários advocatícios.

Custas recursais pela recorrente, suspensa a exigibilidade em face da concessão da assistência judiciária.

É como voto.

 

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Paulo Tamburini e Ivone Campos Guilarducci Cerqueira.

 

Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.

 

Fonte: DJe